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Sincericídio. Será?

  • Foto do escritor: Nely Silvestre
    Nely Silvestre
  • 19 de set. de 2022
  • 2 min de leitura

Atualizado: 11 de out. de 2022


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- Do que você gosta? Ele perguntou.

- De poesia, respondi convicta.



Resposta verdadeira e inocente. Não fosse o contexto: Ele era o entrevistador. Entrevista de emprego. Aquela vaga desejada...


A entrevista é dos momentos mais tensos, desconfortáveis do mundo corporativo.

E, cá entre nós, não é de todo honesto.


Quantas vezes disse e também escutei mentiras sinceras, inofensivas e do tamanho exato da escuta de quem ouvia: - Sou ótima em Excel, lido bem com conflitos, meu maior defeito é ser ansiosa, lido bem com pressão por resultados, sou organizada (não, esta mentira nunca consegui contar...).


Desta vez resolvi ser sincera e assumir o risco. Sei lá, estava num dia excêntrico ou autêntico. No fundo a sinceridade era muito mais comigo do que com o entrevistador.


GOSTO DE POESIA. Assim mesmo, em maiúsculas.


Ele continuou:

- Qual o seu defeito?

- Perder prazos.

- Um aprendizado?

- Só um? Tenho vários: não aceitar políticas, regras e procedimentos que não façam sentido; dinheiro é consequência e não fim; ninguém na empresa quer perder poder; o ego está presente e muitas vezes rege as relações...

E pensei comigo: Perdoe-os. Eles não sabem o que fazem, pensam, sentem... Estão perdidos na corrida louca da meta, do bônus, da carreira, da cadeira, da grana, da dor. Do vazio.


Do vazio, o entrevistador me trouxe de volta:

- Um medo?


- De não ser aceita como sou. Não poder expressar o que sinto. De perder a linha numa reunião do comitê executivo e dizer tudo que está passando na minha cabeça no momento. De assédio. De ser feminina e por isso, só por isso, não ser respeitada.

Ah! São tantos medos... Você não vai querer saber das minhas realizações, projetos passados e planos futuros?


- Não. Quero saber suas vergonhas.


- Vergonhas?

A esta altura olhei dia, mês e ano no celular para me certificar de que não estava em outra dimensão. Dia, mês, ano e hora conferiam com a realidade, segui:


- Vergonha de não dar conta de me mostrar vulnerável, vergonha de falhar, pra ser ainda mais sincera. De passar do limite com a equipe e levantar a voz num dia de pouca paciência com as imaturidades humanas. De querer passar maquiagem todo dia para esconder as marcas dos anos.

Ainda (eu) automatizada pelo modus operandi predominante, perguntei:


- Mas chega desta conversa de sentimentos e sutilezas... Você não quer mesmo saber dos resultados que alcancei nas empresas que passei?


- Não. Saber de seus sentimentos e sutilezas me diz muito mais de você.


- Mas como você vai poder me contratar sabendo de tudo isso, conhecendo minhas vulnerabilidades, minha intimidade? A propósito, qual o seu nome?


- Meu nome é Respectron XXI. Sou um robô. Fui programado para respeitar as incompletudes humanas e saber das minhas incompletudes. Por isso admiro vocês, humanos. Gosto de ver as incoerências, complexidades, contradições, mistérios, desordens, bonitezas de cada um.

Você está contratada! É de uma humana com H maiúsculo que estamos precisando. Você disse que gosta de poesia, né? Aprendi essa esses dias, do Carlos Drummond de Andrade:


Que pode uma criatura senão,

entre criaturas, amar?

amar e esquecer, amar e malamar,

amar, desamar, amar?

sempre, e até de olhos vidrados, amar?


Vocês humanos, sabem amar. Pode começar amanhã?


 
 
 

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As palavras...

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