Quem quer ser um fusca azul?
- Nely Silvestre

- 19 de set. de 2022
- 3 min de leitura
Atualizado: 11 de out. de 2022

Quando minhas filhas eram pequenas, tinham uma brincadeira recorrente: toda vez que estávamos no carro, uma cutucava a outra quando via um fusca azul. Nas grandes distâncias ou longos engarrafamentos em São Paulo, quando em vez eu escutava: Fusca Azul! Junto com o grito, uma cutucada. Ganhava quem tinha visto mais fuscas azuis no caminho. Eu, na direção, ria com a excitação que o jogo causava nas meninas e assim o caminho ficava mais curto, mais rápido, mais leve.
Minhas meninas têm idades acima de dois dígitos e por isso penso que se a brincadeira fosse feita hoje, talvez nem tivesse graça e não atingisse o objetivo de encurtar distâncias ou reduzir o tempo. Os carros coloridos estão cada vez mais escassos pela cidade. Por outro lado, se elas tivessem nascido nos anos 80, sairiam do carro com o braço roxo de tantas cutucadas e talvez o jogo também não tivesse graça já que o elemento surpresa, aquilo que traz a poesia do brincar, seria eliminado pela abundância.
Essa semana, os dias têm amanhecido cinzas em São Paulo, o que é comum por aqui. Nestes dias, os prédios e carros monocromáticos se confundem com a paisagem e o olhar é surpreendido por um verde ou outro das árvores nas esquinas. Mesmo com aquela preguiça que me surge neste clima – sou bem solar – cumpri minha rotina matinal de levar a filha para a escola. Na volta pra casa, ao atravessar um cruzamento, olhei para esquerda e vinha uma infinidade de carros – sequência longa de prateados e brancos, as cores desbotadas dos veículos combinando com o céu. Eis que a monotonia foi quebrada por ele, um fusca azul com os faróis bem amarelos, acesos. Eu sorri. Lembrei das meninas pequenas e vim rindo até em casa.
A experiência me atravessou e me fez refletir sobre a “simples beleza do inesperado”, o incerto tão temido que quando chega faz suspirar, sobre o extraordinário no ordinário. Agradeci a dádiva da memória dos pequenos-grandes acontecimentos da vida.
No livro “O desaparecimento dos rituais”, o filósofo coreano Byung-Chul Han critica a forma como encaramos o trabalho e a produção em nossos tempos: “Sob a coação do trabalho e da produção desaprendemos cada vez mais a capacidade de jogar. Também temos feito raramente o uso lúdico da linguagem.” Em contraponto a essa linguagem usada somente para transmitir informação, Han evidencia os poemas: “Os poemas também são estruturas rígidas que brilham pra si...” “Nos poemas, a linguagem joga. Por esse motivo, hoje não temos mais lido poemas. Poemas são cerimônias mágicas da linguagem.”
Acho interessante que ele explora a perda da nossa capacidade de jogar trazendo o poema como provável antídoto para o lugar enfadonho do não-jogo. Vejo a poesia citada pelo filósofo para além do gênero literário: como uma alegoria para a nossa capacidade de gerar mais vida dentro da vida e a favor dela. Suspeito que é preciso ter olhos de ver a beleza em meio ao caos. Automatizados pela rotina, dormindo acordados, perdemos esses presentinhos com laço de fita. No entanto, como diz a Cris Lisbôa, escritora, professora e pesquisadora brasileira, “o mundo está cheio de bilhetinhos de amor” e “por mais que tente, chuva não desbota flor”.
Em meio a tantos dias cinzas, chuvosos - reais e/ou metafóricos, sejamos flor que resiste, botemos pra jogo a vida sem levar tudo tão a sério, enxerguemos fuscas azuis em meio aos desbotados automóveis.
Leiamos poesia. Te deixo com a minha versão da frase de Guimarães Rosa: “qualquer poema já é um pouquinho de saúde”. Sejamos nós: flor, versos, brincadeira ou cor para alguém.






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